quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Instruções para chorar - Júlio Cortázar

Deixando de lado os motivos, vamos nos ater à maneira correta de chorar, entendendo por isso um choro que não chegue a ser escândalo, nem que insulte ao sorriso com sua paralela e torpe semelhança. O choro médio ou comum consiste em uma contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e mucos, estes últimos ao final, pois o choro acaba no momento em que alguém assoa com força.

Para chorar, dirija a imaginação até você mesmo, e se isso lhe resulta impossível por haver contraído o hábito de crer no mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais nunca entra ninguém, nunca.

Chegado o choro, deve-se, com brio, cobrir o rosto usando ambas as mãos com a palma para dentro. Os meninos chorarão com a manga da blusa contra a cara, e de preferência em um canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.


Texto em espanhol: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/cortazar/instrucciones_para_llorar.htm

Tradução base: https://cronicasurbanas.wordpress.com/2011/10/26/instrucoes-para-chorar/

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Epigramas - Ernesto Cardenal

Ao te perder eu a ti tu e eu perdemos:
eu porque tu eras o que eu mais amava
e tu porque eu era o que te amava mais.
Mas de nós dois tu perdes mais que eu:
porque eu poderei amar outras como a ti te amava
mas a ti não te amarão como eu te amava.

Epigramas - Ernesto Cardenal

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Epigrama

Thaida Quintus amat. 'quam Thaida?' Thaida luscam.
unum oculum Thais non habet, ille duos.

-

Quinto ama Thais. 'Qual Thais?' Thais caolha.
Thais não tem um olho, mas ele não tem os dois.

Marcial (autor romano de epigramas satíricos)

N: Os romanos pensavam que o amor era 'cego' e tornava 'cegos' os amantes.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Uma Beldade Russa

Não me lembro do nome dela, mas ela era muito bonita.
Eu tenho de admitir certa quantia de incerteza, em geral, sobre esta história, porque, não apenas as partes mais importantes dela foram só contadas para mim, e não presenciei nenhum dos eventos principais, mas também foram contadas para mim há vários anos. E, como todo mundo sabe, as histórias mudam na mente à medida que os anos passam, são infectadas por sonhos, alteradas à medida que a pobre mente se revira em seu berço de ossos.
Apesar de ela não ser o meu tipo, como dizem, ela era muito bonita mesmo aos quarenta, e deve ter sido dolorosamente bonita no seu auge. Bonita como uma modelo dos anos setenta teria sido, porque ela era uma modelo dos anos setenta. Não em Londres, mas na Rússia.
Não me lembro do seu nome, não porque ela não tenha me marcado, na verdade eu tenho pensado nela e em sua história mil vezes desde o início dos anos noventa; mas porque simplesmente desapareceu. Então talvez eu possa chamá-la de Nadia.
Ela era minha tradutora enquanto eu estava lecionando no Instituto Gorki. Isso soa grande, ou pelo menos romântico. Mas não saiu desta maneira. Era apenas eu falando para um estranho bando flutuante de estudantes que pareciam mais com crianças do que com outra coisa. Mas eram anos estranhos na Rússia, e todos estavam desnutridos. Você era sortudo se pudesse comer algo saboroso. Eu pedi frango um dia em um café, e o que veio para a mesa pode muito bem ter sido frango um dia, mas agora parecia com um atropelamento. Como um frango que tenha sido atropelado algumas vezes, e abandonado na vala de uma rua; e na chuva.
Eu olhei em volta, e os russos estavam mexendo em pratos de frango parecidos. Eles comiam como lobos agradecidos.
Naqueles dias, não havia absolutamente nada nos supermercados. Você entrava nos supermercados e não havia nada; para olhos ocidentais, pelo menos. Talvez os russos pudessem ver coisas nas prateleiras que eu não podia.
Era aterrorizante.
Mas há vários tipos diferentes de terror. Há o terror tal qual o que passamos na Irlanda do Norte; há o terror, o terror interior do incesto e abuso infantil. Há o terror da memória inconstante. Há milhões de terrores que vêm com a vida. Mesmo um líder que professa estar lutando contra o terror, às vezes está ele próprio causando terror. Deve ser um tipo de música de fundo humana. Do terror viemos e para o terror retornaremos.
Em uma festa em Moscou, entretanto, o editor de um famoso jornal russo disse para mim que éramos todos crianças no ocidente. Que não tínhamos resistido a um décimo do que eles tiveram na Rússia. Éramos bebês na história. Pensei na fome e história geral de opressão irlandesas, a Primeira Guerra Mundial e a segunda, e assim por diante, mas não disse nada; ela precisava que isso fosse verdade, e talvez fosse.
A própria Nadia tinha uma visão desoladora da Rússia e dos russos. Disse que Stalin matou todos de algum valor. Deixou apenas os doentes e os loucos. Foi uma frase que ficou comigo, é claro. Os doentes e os loucos. Primeiramente, pensei que ela estivesse se excluindo, pela maneira que disse, como se ela tivesse miraculosamente escapado, não ficando doente nem louca. Mas é claro que eu estava errado. Não louca, talvez.
Nadia era casada, ou vivia com, um famoso diretor de cinema. Ele era mais ou menos trinta anos mais velho do que ela. Fez um famoso filme nos anos cinqüenta com Innokenty Smokdunovski, o grande ator russo. Eles viviam em um apartamento melhor do que a maioria, em Moscou. Ela levou-me lá uma vez. Seu velho diretor de cinema era como um dos poetas irlandeses que eu havia conhecido anos antes, mais grisalho, mal-humorado e atraente, chamado Arthur Power, que tinha sido um amigo de Joyce. Pensei que ele talvez fosse Arthur em uma nova aparência, o que era reconfortante. Arthur havia morrido há tempos.
De qualquer maneira, eles viviam juntos, ele na glória dos anos cinqüenta, ela na glória dos setenta, quando ela tinha sido uma modelo famosa – a mais bonita de todas, seu marido disse. Curiosamente, ele tinha o mesmo sobrenome de um dos capangas de Stalin, mas nenhuma relação, aparentemente. É difícil saber em um país quais nomes são tão comuns como Smith ou Murphy. Você sabe a maneira como os americanos às vezes perguntam, você conhece Pat Murphy em Dublin? Como se houvesse só alguns. Os Pat Murphys da Irlanda são uma legião.
A porta do apartamento deles era fortificada com aço. Tinha sido recentemente feito. Nadia disse que eles viviam com terror dos novos gângsteres que estavam vagando por aí. Se eles pensassem que você tinha algo de valor, eles arrombariam sua porta, o matariam, e pegariam o que quisessem, e ninguém nunca os pegaria. Era perigoso na Rússia daquele tempo possuir algo, ou ter a reputação de possuir algo.
Até então, não havia realmente ninguém para pegá-los. O exército estava sendo alimentado em seus complexos, mas a polícia estava sofrendo em algum lugar em seus escritórios e quartéis. Era o momento pouco antes de Yeltsin invadir a Casa Branca russa com seus tanques. Eu vi isso acontecendo no noticiário, de volta à Irlanda mais tarde, e me perguntei sobre Nadia. Esperei que tempos melhores viessem para ela. Mas talvez ela não tivesse mais nenhum tempo bom sobrando.
Ela tinha sido muito popular e em demanda no seu auge, e claro que seu marido era uma celebridade. De uma maneira ou de outra, ele tinha conseguido aplacar os vários regimes, de um líder a outro, sem se comprometer inteiramente. Ele não era um radical, e nem um colaborador. Ele era apenas um homem vivo, um artista, e gostava da vida pacífica.
Uma vez eles estiveram na Itália juntos. Era algum tipo de jantar de embaixada, de qual embaixada não me lembro, talvez até a própria embaixada russa em Roma. Um dos filhos de Brezhnev estava lá, ou talvez seu único filho, não me recordo. Apenas recentemente eu li que a família Brezhnev era frequentemente acusada de tirar vantagem enquanto seu pai estava no poder, especialmente sua filha. Mas, qualquer embaixada que fosse, era inclinada a homenagear seu filho, e ele era o convidado de honra de qualquer maneira.
Haviam ajustes de lugares feitos, com os nomes de todos que estavam lá naquela noite em Roma, e no último minuto houve uma mudança de planos. Os lugares foram todos trocados, e Nadia se encontrou ocupando a cadeira que havia sido primeiramente atribuída ao filho de Brezhnev. Então, todos começaram o jantar, suponho, e comeram, e conversaram – aquela velha conversa perdida dos anos setenta.
Uma das curiosas coincidências sobre tudo isso era que uma das razões para eu ter vindo a Moscou para lecionar no Instituto Gorki era que isso me daria a chance de ver Innokenty Smokdunovski – agora um homem bem velho – no palco no Moscow Arts. Ele havia atuado em Dublin e eu pensei que ele era um dos melhores atores vivos. E quis vê-lo atuando novamente. Mas isso não tem importância. Apenas pelo fato de que isso meio que me juntou ao marido de Nadia; se não espiritualmente, pelo menos no nível do comum imaginar das coisas, como coisas respondem a coisas e estão entrelaçadas em coisas daquela maneira misteriosa e ainda assim comum.
Na última manhã em que estive com Nadia, ela estava me mostrando sua igreja favorita em Moscou. Era parte de um monastério. Era noite, uma luz amarela pousava nas árvores de inverno. Moscou para um irlandês era como uma pista de patinação. Um irlandês estava sempre com os sapatos errados e tinha de andar muito devagar e com cuidado, como um idoso.
Havia algumas idosas mendigando na porta da igreja. Uma luz amarela diferente se infiltrou pela porta aberta, o amarelo de velas, lâmpadas nuas, e pinturas douradas. Amarelos se misturando no ar de fora, e as mãos desesperadas, aterrorizantes, estendidas das idosas.
Nadia havia alcançado o portal da igreja, mas subitamente parou e inclinou-se contra as velhas. Por alguns momentos, seus olhos pareceram tão velhos quanto as velhas mendigas, mais velhos, eternos.
Você está bem? Eu disse.
Sim, sim, bem, ela disse, por favor, me dê um momento.
Está indisposta? Eu disse.
Estou indisposta, Ela disse.
Talvez algo que você comeu? Eu disse, pensando no frango.
Sim, ela disse. Sim. Algo que eu comi.
Então ela me contou sua história sob a parede escurecida da igreja.
Alguns anos atrás, ela havia ido ao seu médico com graves dores em sua barriga. Ele prescreveu vários remédios, mas eles fizeram pouco bem, e as dores persistiram. Então seu marido a levou até um médico muito famoso. Eu não me lembro do seu nome, é claro. O médico famoso deu-lhe um diagnóstico que a assombrou. Aterrorizou-a. Ela chorou por três dias ela disse.
Eu chorei por três dias, ela disse.
O diagnóstico que ele deu-lhe era envenenamento. Não envenenamento por comida, mas um envenenamento particular usado por vários departamentos secretos de governo. Era um veneno que se movia lentamente, talvez por muitos anos, a fim de afastar a vítima dos envenenadores, mas que mais do que provavelmente mataria a vítima – como um tiro de espingarda à distância, apenas diferente. Ela poderia lembrar, ele perguntou-lhe, alguma circunstância em sua vida em que possa ter sido colocada no caminho de tal veneno?
Ela foi para casa para seu marido, ela disse, e o contou. Ele a segurou em seu velhos braços e eles torturaram seus cérebros juntos.
Então ocorreu para ele. O jantar na embaixada em Roma todos aqueles anos antes. O filho de Brezhnev, e a mudança de lugares no último minuto. Ela no lugar destinado a ele.
Você teria comido a comida originalmente destinada a ele, seu marido disse.
Eles voltaram ao famoso médico e contaram-lhe e ele balançou sua cabeça gravemente, do jeito que os médicos fazem em todas as línguas e países quando as notícias são tão ruins quanto podem ser.
Provavelmente, então - , disse o médico, nomeando um veneno particular. Era um veneno conhecido por ser usado pela própria KGB, mas também por outros serviços secretos estrangeiros. Talvez o filho de Brezhnev fosse tão oportunista quanto sua irmã, não sei, e de qualquer forma sempre há mil razões para se livrar de pessoas no poder, ou perto dele. Na verdade, ela disse, o famoso médico estava visivelmente perturbado, porque se lembrava dela em seu auge – ele talvez até tenha se derretido por ela, ela pensou, quando ela era uma linda garota nas revistas da Rússia.
Qual era o prognóstico, eu perguntei-lhe, subitamente sentindo, sob aquela parede da igreja, que eu estava não apenas perguntando a ela, mas perguntando ao país inteiro, porque nós, na Irlanda, estamos acostumados a personificar a Irlanda com a forma e o rosto de uma linda mulher.
Qual era o prognóstico?
Eu ficarei pior e pior, ela disse, mas muito muito devagar, e então eu vou morrer.


Sebastian Barry

(Traduzido por Sabrina)