Não me
lembro do nome dela, mas ela era muito bonita.
Eu tenho de
admitir certa quantia de incerteza, em geral, sobre esta história, porque, não
apenas as partes mais importantes dela foram só contadas para mim, e não
presenciei nenhum dos eventos principais, mas também foram contadas para mim há
vários anos. E, como todo mundo sabe, as histórias mudam na mente à medida que
os anos passam, são infectadas por sonhos, alteradas à medida que a pobre mente
se revira em seu berço de ossos.
Apesar de
ela não ser o meu tipo, como dizem, ela era muito bonita mesmo aos quarenta, e
deve ter sido dolorosamente bonita no seu auge. Bonita como uma modelo dos anos
setenta teria sido, porque ela era uma modelo dos anos setenta. Não em Londres,
mas na Rússia.
Não me
lembro do seu nome, não porque ela não tenha me marcado, na verdade eu tenho
pensado nela e em sua história mil vezes desde o início dos anos noventa; mas
porque simplesmente desapareceu. Então talvez eu possa chamá-la de Nadia.
Ela era
minha tradutora enquanto eu estava lecionando no Instituto Gorki. Isso soa
grande, ou pelo menos romântico. Mas não saiu desta maneira. Era apenas eu
falando para um estranho bando flutuante de estudantes que pareciam mais com
crianças do que com outra coisa. Mas eram anos estranhos na Rússia, e todos
estavam desnutridos. Você era sortudo se pudesse comer algo saboroso. Eu pedi
frango um dia em um café, e o que veio para a mesa pode muito bem ter sido
frango um dia, mas agora parecia com um atropelamento. Como um frango que tenha
sido atropelado algumas vezes, e abandonado na vala de uma rua; e na chuva.
Eu olhei em
volta, e os russos estavam mexendo em pratos de frango parecidos. Eles comiam
como lobos agradecidos.
Naqueles
dias, não havia absolutamente nada nos supermercados. Você entrava nos
supermercados e não havia nada; para olhos ocidentais, pelo menos. Talvez os
russos pudessem ver coisas nas prateleiras que eu não podia.
Era
aterrorizante.
Mas há
vários tipos diferentes de terror. Há o terror tal qual o que passamos na
Irlanda do Norte; há o terror, o terror interior do incesto e abuso infantil.
Há o terror da memória inconstante. Há milhões de terrores que vêm com a vida.
Mesmo um líder que professa estar lutando contra o terror, às vezes está ele
próprio causando terror. Deve ser um tipo de música de fundo humana. Do terror
viemos e para o terror retornaremos.
Em uma
festa em Moscou, entretanto, o editor de um famoso jornal russo disse para mim
que éramos todos crianças no ocidente. Que não tínhamos resistido a um décimo
do que eles tiveram na Rússia. Éramos bebês na história. Pensei na fome e
história geral de opressão irlandesas, a Primeira Guerra Mundial e a segunda, e
assim por diante, mas não disse nada; ela precisava que isso fosse verdade, e
talvez fosse.
A própria
Nadia tinha uma visão desoladora da Rússia e dos russos. Disse que Stalin matou
todos de algum valor. Deixou apenas os doentes e os loucos. Foi uma frase que
ficou comigo, é claro. Os doentes e os loucos. Primeiramente, pensei que ela
estivesse se excluindo, pela maneira que disse, como se ela tivesse
miraculosamente escapado, não ficando doente nem louca. Mas é claro que eu
estava errado. Não louca, talvez.
Nadia era
casada, ou vivia com, um famoso diretor de cinema. Ele era mais ou menos trinta
anos mais velho do que ela. Fez um famoso filme nos anos cinqüenta com
Innokenty Smokdunovski, o grande ator russo. Eles viviam em um apartamento
melhor do que a maioria, em Moscou. Ela levou-me lá uma vez. Seu velho diretor
de cinema era como um dos poetas irlandeses que eu havia conhecido anos antes,
mais grisalho, mal-humorado e atraente, chamado Arthur Power, que tinha sido um
amigo de Joyce. Pensei que ele talvez fosse Arthur em uma nova aparência, o que
era reconfortante. Arthur havia morrido há tempos.
De qualquer
maneira, eles viviam juntos, ele na glória dos anos cinqüenta, ela na glória
dos setenta, quando ela tinha sido uma modelo famosa – a mais bonita de todas,
seu marido disse. Curiosamente, ele tinha o mesmo sobrenome de um dos capangas
de Stalin, mas nenhuma relação, aparentemente. É difícil saber em um país quais
nomes são tão comuns como Smith ou Murphy. Você sabe a maneira como os
americanos às vezes perguntam, você conhece Pat Murphy em Dublin? Como se
houvesse só alguns. Os Pat Murphys da Irlanda são uma legião.
A porta do
apartamento deles era fortificada com aço. Tinha sido recentemente feito. Nadia
disse que eles viviam com terror dos novos gângsteres que estavam vagando por
aí. Se eles pensassem que você tinha algo de valor, eles arrombariam sua porta,
o matariam, e pegariam o que quisessem, e ninguém nunca os pegaria. Era perigoso
na Rússia daquele tempo possuir algo, ou ter a reputação de possuir algo.
Até então,
não havia realmente ninguém para pegá-los. O exército estava sendo alimentado
em seus complexos, mas a polícia estava sofrendo em algum lugar em seus
escritórios e quartéis. Era o momento pouco antes de Yeltsin invadir a Casa
Branca russa com seus tanques. Eu vi isso acontecendo no noticiário, de volta à
Irlanda mais tarde, e me perguntei sobre Nadia. Esperei que tempos melhores
viessem para ela. Mas talvez ela não tivesse mais nenhum tempo bom sobrando.
Ela tinha sido
muito popular e em demanda no seu auge, e claro que seu marido era uma
celebridade. De uma maneira ou de outra, ele tinha conseguido aplacar os vários
regimes, de um líder a outro, sem se comprometer inteiramente. Ele não era um
radical, e nem um colaborador. Ele era apenas um homem vivo, um artista, e
gostava da vida pacífica.
Uma vez
eles estiveram na Itália juntos. Era algum tipo de jantar de embaixada, de qual
embaixada não me lembro, talvez até a própria embaixada russa em Roma. Um dos
filhos de Brezhnev estava lá, ou talvez seu único filho, não me recordo. Apenas
recentemente eu li que a família Brezhnev era frequentemente acusada de tirar
vantagem enquanto seu pai estava no poder, especialmente sua filha. Mas,
qualquer embaixada que fosse, era inclinada a homenagear seu filho, e ele era o
convidado de honra de qualquer maneira.
Haviam
ajustes de lugares feitos, com os nomes de todos que estavam lá naquela noite
em Roma, e no último minuto houve uma mudança de planos. Os lugares foram todos
trocados, e Nadia se encontrou ocupando a cadeira que havia sido primeiramente atribuída
ao filho de Brezhnev. Então, todos começaram o jantar, suponho, e comeram, e
conversaram – aquela velha conversa perdida dos anos setenta.
Uma das
curiosas coincidências sobre tudo isso era que uma das razões para eu ter vindo
a Moscou para lecionar no Instituto Gorki era que isso me daria a chance de ver
Innokenty Smokdunovski – agora um homem bem velho – no palco no Moscow Arts.
Ele havia atuado em Dublin e eu pensei que ele era um dos melhores atores
vivos. E quis vê-lo atuando novamente. Mas isso não tem importância. Apenas pelo
fato de que isso meio que me juntou ao marido de Nadia; se não espiritualmente,
pelo menos no nível do comum imaginar das coisas, como coisas respondem a
coisas e estão entrelaçadas em coisas daquela maneira misteriosa e ainda assim
comum.
Na última
manhã em que estive com Nadia, ela estava me mostrando sua igreja favorita em Moscou.
Era parte de um monastério. Era noite, uma luz amarela pousava nas árvores de
inverno. Moscou para um irlandês era como uma pista de patinação. Um irlandês
estava sempre com os sapatos errados e tinha de andar muito devagar e com
cuidado, como um idoso.
Havia
algumas idosas mendigando na porta da igreja. Uma luz amarela diferente se
infiltrou pela porta aberta, o amarelo de velas, lâmpadas nuas, e pinturas
douradas. Amarelos se misturando no ar de fora, e as mãos desesperadas,
aterrorizantes, estendidas das idosas.
Nadia havia alcançado o portal da igreja, mas subitamente parou e inclinou-se
contra as velhas. Por alguns momentos, seus olhos pareceram tão velhos quanto
as velhas mendigas, mais velhos, eternos.
Você está
bem? Eu disse.
Sim, sim,
bem, ela disse, por favor, me dê um momento.
Está
indisposta? Eu disse.
Estou
indisposta, Ela disse.
Talvez algo
que você comeu? Eu disse, pensando no frango.
Sim, ela
disse. Sim. Algo que eu comi.
Então ela
me contou sua história sob a parede escurecida da igreja.
Alguns anos
atrás, ela havia ido ao seu médico com graves dores em sua barriga. Ele
prescreveu vários remédios, mas eles fizeram pouco bem, e as dores persistiram.
Então seu marido a levou até um médico muito famoso. Eu não me lembro do seu nome,
é claro. O médico famoso deu-lhe um diagnóstico que a assombrou. Aterrorizou-a.
Ela chorou por três dias ela disse.
Eu chorei
por três dias, ela disse.
O
diagnóstico que ele deu-lhe era envenenamento. Não envenenamento por comida,
mas um envenenamento particular usado por vários departamentos secretos de
governo. Era um veneno que se movia lentamente, talvez por muitos anos, a fim
de afastar a vítima dos envenenadores, mas que mais do que provavelmente
mataria a vítima – como um tiro de espingarda à distância, apenas diferente.
Ela poderia lembrar, ele perguntou-lhe, alguma circunstância em sua vida em que
possa ter sido colocada no caminho de tal veneno?
Ela foi
para casa para seu marido, ela disse, e o contou. Ele a segurou em seu velhos
braços e eles torturaram seus cérebros juntos.
Então
ocorreu para ele. O jantar na embaixada em Roma todos aqueles anos antes. O
filho de Brezhnev, e a mudança de lugares no último minuto. Ela no lugar destinado
a ele.
Você teria
comido a comida originalmente destinada a ele, seu marido disse.
Eles
voltaram ao famoso médico e contaram-lhe e ele balançou sua cabeça gravemente,
do jeito que os médicos fazem em todas as línguas e países quando as notícias
são tão ruins quanto podem ser.
Provavelmente,
então - , disse o médico, nomeando um veneno particular. Era um veneno
conhecido por ser usado pela própria KGB, mas também por outros serviços
secretos estrangeiros. Talvez o filho de Brezhnev fosse tão oportunista quanto
sua irmã, não sei, e de qualquer forma sempre há mil razões para se livrar de
pessoas no poder, ou perto dele. Na verdade, ela disse, o famoso médico estava
visivelmente perturbado, porque se lembrava dela em seu auge – ele talvez até
tenha se derretido por ela, ela pensou, quando ela era uma linda garota nas
revistas da Rússia.
Qual era o
prognóstico, eu perguntei-lhe, subitamente sentindo, sob aquela parede da
igreja, que eu estava não apenas perguntando a ela, mas perguntando ao país
inteiro, porque nós, na Irlanda, estamos acostumados a personificar a Irlanda
com a forma e o rosto de uma linda mulher.
Qual era o
prognóstico?
Eu ficarei
pior e pior, ela disse, mas muito muito devagar, e então eu vou morrer.
Sebastian Barry
(Traduzido por Sabrina)